segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Somos duas!


Tenho duas escovas de dente. Dois guarda-roupas, duas camas, duas televisões. Eu tenho duas moradas e não sabia. Ela e eu, eu e ela, convivendo no mesmo corpo cansado e triste. A luta é constante e as características são diferentes. Eu sou passional, ela é racional. Eu quero me libertar, ela quer ficar onde está. O destino me comanda, ela comando o destino. Eu acredito no mundo, ela o despreza. Sou carente, ela é independente. Eu tenho amigos, ela tem conhecidos. Eu choro por tudo, ela não derrama uma lágrima qualquer. Eu não tenho nada do que quero, ela tem mais do que precisa. Eu desejo tudo, ela não quer nada. Eu sonho com um amor, ela sonha com o trabalho. Eu quero sair, ela quer dormir. Eu me conheço, ela não sabe nada sobre ela. Eu sou sonhadora, ela realiza. Penso muito, ela age. Eu sei que ela existe, ela ignora minha existência. Eu vivia dentro dela, e ela dentro de mim. Repetia esse refrão incessantemente para ver se tornava tudo mais real, mais tangível. Nunca me dei com essa situação tão simples e tão real. O momento da verdade chegou e eu vi, claro com a água que corre aos meus pés, que eu era ela, e ela era eu. A união de duas pessoas tão diferentes e, mesmo assim, tão próximas, faz a pessoa que sou e junção de nós duas ficou a cargo do tempo.



...Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido. Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.




Caio Fernando Abreu

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